quarta-feira, 23 de maio de 2018

Carrancas do São Francisco

Foto Marcel Gautherot . Acervo IPHAN.

As carrancas do Rio São Francisco
largaram suas proas. e vieram 
para um banco da Rua do Ouvidor.
O leão, o cavalo, o bicho estranho
deixam-se contemplar no rio seco,
entre cheques, recibos, duplicatas
Já não defendem do caboclo-d'água
o barqueiro e seu barco. Porventura
vêm proteger-nos de perigos outros
que não sabemos, ou contra os assaltos
desfecham seus poderes ancestrais
o leão, o cavalo, o bicho estranho
postados no salão, longe das águas.
Interrogo, perscruto, sem resposta
as rudes caras, os lanhados lenhos
que tanta coisa viram, navegando
no leito cor de barro. O velho Chico
fartou-se deles, já não crê nos mitos
que a figura de proa conjurava,
ou contra os mitos já não há defesa
nos mascarões zoomórficos enormes?
Quisera ouvi-los; muito contariam
de peixes e de bomens, na dificil
aventura da vida dos remeiros.
O rio, esse caminho de canções,
de esperanças, de trocas, de naufrágios,
deixou nas carrancudas cataduras
um traço fluvial de nostalgia,
e vejo, pela Rua do Ouvidor, 
singrando o asfalto, graves, silenciosos,
o leão, o cavalo, o bicho estranho. . .

Carlos Drummond de Andrade, 1974.

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